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Castro Rocha: 'Brasil é laboratório de criação de realidade paralela' 392t20

Professor alerta para as consequências de 'processo de lavagem cerebral' alimentado por engajamento em torno da desinformação e de teorias conspiratórias


21/10/2022 04:00 - atualizado 10/11/2022 09:57

professor e historiador Joao Cezar de Castro Rocha
Para o professor e historiador João Cezar de Castro Rocha, "nunca estivemos em uma situação tão grave na história da República" (foto: Rogerio B. Huss/Flip - )

 

Para o pesquisador e professor João Cezar de Castro Rocha, o Brasil assiste à consolidação das condições para a instauração de um estado totalitário fundamentalista religioso. Este é o propósito da extrema-direita brasileira, que compartilha as mesmas estratégias de seus aliados transnacionais: o uso das plataformas de mídias digitais para a produção da dissonância cognitiva coletiva, um Brasil paralelo, que fratura a espinha dorsal dos valores verdadeiramente cristãos e democráticos. É a opinião de Castro Rocha, ensaísta e professor titular de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autor de “Guerra cultural e retórica do ódio” (Editora Caminhos). 

 

“Está acontecendo diante dos nossos olhos. E há dezenas de milhões de brasileiros que parecem não compreender o perigo. E muitos desses brasileiros e brasileiras são pessoas que nós conhecemos, alguns são nossos parentes, não são pessoas más, cuja índole pudesse suspeitar que apoiariam o que está ocorrendo. É um processo de lavagem cerebral coletiva, é um processo de criação de dissonância cognitiva coletiva”, afirma o professor. “Nunca estivemos numa situação tão grave na história da República. Estamos hoje no Brasil em 1913, do filme alemão “A fita branca” (de Michael Haneke), a geração que, posteriormente, participou da ascensão do nazismo. “Estamos vendo pessoas que conhecemos e respeitamos, e jamais imaginamos que pudessem ser cúmplices de um projeto totalitário de poder”, salienta o professor.

 

"A finalidade da eterna guerra cultural da extrema-direita é aumentar a presença nas redes sociais, com conteúdo abjeto, absurdo, pois essa presença pode se materializar em votos, capturando o campo dos indecisos. Quando isso acontece de forma vertiginosa? Na véspera das eleições" 59228

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  Como estudioso da extrema-direita no Brasil, que avaliação faz dos resultados das eleições presidenciais?

Do ponto de vista pessoal, Jair Bolsonaro não é vitorioso, é sobrevivente do primeiro turno: foi o grande derrotado e primeiro presidente de toda a história da Nova República que, buscando a reeleição, não ou ao segundo turno em primeiro lugar. Por outro lado, do ponto de vista político-partidário, o bolsonarismo foi vitorioso com a eleição para o Senado de Damares Alves, no Distrito Federal, Marcos Pontes, em São Paulo, e Hamilton Mourão, no Rio Grande do Sul, entre outros nomes. Isso quer dizer que, se em 2018 Bolsonaro elegeu grande número de parlamentares, governadores e senadores, em 2022, quem sustentou Bolsonaro foi o bolsonarismo. Isso exige compreender que alguns valores bolsonaristas se enraizaram na sociedade brasileira.

 

Qual é o projeto político da extrema-direita no Brasil?

Criar as condições para instaurar um Estado totalitário e fundamentalista, do ponto de vista religioso. E a estratégia para alcançar esse propósito a pela midiosfera digital e a produção de dissonância cognitiva coletiva. No Brasil, a dissonância cognitiva coletiva tornou-se esteio de um projeto político totalitário, o bolsolavismo, que mira a despolitização da pólis, desviando com falsas e abjetas notícias o debate dos temas que realmente importam. O Brasil é um laboratório mundial de criação metódica de realidade paralela. O que a extrema-direita tem feito no plano da política é a despolitização do debate público para avançar o projeto político totalitário – de eliminação completa do adversário ou do outro que resiste – em algumas circunstâncias, mesmo teocrático. E como isso se realiza? Produzindo a dissonância cognitiva coletiva pela instrumentalização da midiosfera extremista. Por que as redes sociais são o sal da terra para a extrema-direita? O que se trata é trazer para o campo da política o alto nível de engajamento das redes sociais. Ora, qual é a finalidade da eterna guerra cultural da extrema-direita? Não é mudar o voto do campo adversário! Estão preocupados unicamente em aumentar a presença nas redes sociais, com conteúdo abjeto, absurdo, pois essa presença pode se materializar em votos, capturando o campo dos indecisos. Quando isso acontece de forma vertiginosa? Na véspera das eleições, faltando poucos dias. A dissonância cognitiva coletiva é uma temível máquina eleitoral pela transferência para a política da alta intensidade de engajamento das redes sociais. É um engajamento em torno da desinformação e de teorias conspiratórias. Na imi- nência do segundo turno das eleições, a midiosfera extremista transformou-se em uma usina sórdida de desinformação e seus artífices incorrem nos mais variados tipos criminais como se não houvesse amanhã. 

 

"A extrema-direita está à frente em relação ao campo progressista no que se refere à compreensão profunda da forma própria do mecanismo do universo digital" 5e6b56

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 O que diz a bibliografia internacional sobre a dissonância cognitiva?

O psicólogo social norte-americano Leon Festinger publicou, em 1957, um clássico chamado “Uma teoria da dissonância cognitiva”. Acrescento ao conceito da dissonância cognitiva de Festinger a perspectiva coletiva, que está associada à capacidade da produção de conteúdo das redes sociais. Dissonância cognitiva é um desconforto subjetivo causado pela consciência da distância entre crenças e comportamentos, ocorre sempre que há uma distância entre aquilo em que acreditamos e a maneira pela qual nos comportamos. Não há ser humano que não viva com certo grau de dissonância cognitiva. Diz Festinger que, quando essa dissonância cognitiva começa a incomodar, torna-se gritante e muito óbvia, há mecanismos para reduzir a dissonância cognitiva. São dois mecanismos principais, e você verá neles o próprio bolsonarismo e a extrema-direita de uma forma pervertida. Diz Festinger: o famoso exemplo do médico que fuma, ninguém melhor do que ele saberá que o tabagismo faz mal à saúde. Então, o que faz ele? Ou ele recusa fontes que demonstram cientificamente que o tabagismo é maléfico, ou, pelo contrário, só busca fontes que amenizam essa informação. Ou você recusa informação que contraria a sua crença, ou você busca informação que reforça o que você já pensava. É a própria midiosfera extremista. Agora aqui a coisa fica mais complexa, pois diz Festinger que sempre agimos para reduzir a dissonância cognitiva, não para aumentá-la ou cristalizá-la. Então, o que está acontecendo com o bolsonarismo é a cristalização, a consolidação de um Brasil paralelo. 

 

O que caracteriza o fenômeno no Brasil?

As pessoas que voluntariamente se submetem à midiosfera extremista estabelecem um pacto: somente se informar na midiosfera extremista; nunca aceitar outra fonte. Então, não há mais possibilidade objetiva de se demonstrar que há erro nessas informações, porque todas as outras fontes de informação foram desqualificadas e vedadas. Hoje, no Brasil, contamos com dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras – e como diz Mário de Andrade, brasileiros e brasileiras como nós – que estão vivendo na ilusão, estão realmente convencidos de todo conteúdo dessa usina de desinformação, dessa máquina tóxica de produção de conteúdo com base em fake news e teorias conspiratórias, que domina a midiosfera bolsonarista. Para dizer de forma mais simples: essas pessoas estão vivendo numa dimensão paralela. Tenho uma hipótese na qual que estou trabalhando em um livro para o ano que vem. O bolsonarismo, como fenômeno de massa, enraizado em diversos setores da sociedade, é a manifestação no Brasil de uma onda transnacional que levou a extrema-direita a conquistar o poder por meio do voto em várias partes do mundo. A extrema-direita está à frente em relação ao campo progressista no que se refere à compreensão profunda da forma própria do mecanismo do universo digital. O que ela tem feito? É a inédita criação da dissonância cognitiva coletiva deliberada, por meio de um conteúdo coordenado, estrategicamente produzido para desinformar e fazer circular teorias conspiratórias e fake news. O universo digital e as redes sociais possibilitaram isso e não é casual o fato de que o principal instrumento de divulgação da extrema-direita bolsonarista sejam as redes sociais e plataformas digitais. 

 

"A dissonância cognitiva coletiva é uma temível máquina eleitoral pela transferência para a política da alta intensidade de engajamento das redes sociais. É um engajamento em torno da desinformação e de teorias conspiratórias" 3c553r

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 O que ocorre quando a pessoa que vive nessa dimensão paralela é confrontada pela realidade brutal da vida, que contradiz a narrativa dominante desta midiosfera">

"Hoje, no Brasil, contamos com dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras que estão vivendo na ilusão, estão realmente convencidos de todo conteúdo dessa usina de desinformação" 6jw4s

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 Quais são as semelhanças em relação à forma de operação da midiosfera bolsonarista com outros populistas da extrema-direita mundial?

Nas décadas iniciais do século 21, o grande fenômeno político foi o avanço transnacional da extrema-direita pelo voto, empregando as mesmas narrativas retóricas. Não se trata mais de uma extrema-direita que conquista poder pela botina e pelo tanque, mas que, na primeira eleição, chega ao poder seduzindo o eleitorado e conquistando corações e mentes. Uma vez no po- der, a extrema-direita a a enfraquecer e corroer as instituições democráticas. É a mesma estratégia de argumentação e conteúdo que foi usada por Rodrigo Duterte, nas Filipinas; por Donald Trump, nos Estados Unidos; por Viktor Orbán, na Hungria; por Andrzej Duda, na Polônia; por Jair Bolsonaro, no Brasil. Então, existe certo nível de coordenação. Steve Bannon, antes de ser preso por ter feito rachadinha ou rachadão com dinheiro arrecadado numa campanha chamada We build the wall, criou o The Movement, uma espécie de internacional da extrema-direita. Viajou a vários países da Europa fazendo seminários e conhecendo lide- ranças jovens para organizar ações combinadas e programadas. A extrema-direita transnacional conta com apoio maciço das megaplataformas e do capital internacional. Por que ela tem sido tão poderosa nas duas primeiras décadas do século 21? Porque aprendeu a combinar o incombinável: a verticalização com a horizontalidade. Combina uma estrutura das redes digitais que, na aparência do exercício cotidiano, é horizontal, mas é verticalizada tanto na produção do conteúdo quanto na configuração dos algoritmos que definem o seu alcance. Essa é a força da extrema-direita no mundo e da extrema-direita bolsonarista. Hoje, o bolsonarismo, assim como a extrema-direita transnacional, criou uma profissão: o MEI (microempreendedor ideológico): há muitas pessoas ganhando dinheiro com radicalização política em seus canais no YouTube. 

 

Como recuperar a consciência coletiva no Brasil? 

O Brasil vive uma situação grave, nunca estivemos numa situação tão grave na história da República. E a analogia final que faço: estamos hoje no Brasil em 1913, o ano do filme “A fita branca”, que retrata a futura geração que viverá a ascensão do nazismo. Estamos vendo pessoas que conhecemos e respeitamos, e ja mais imaginamos que pudessem ser cúmplices de um projeto totalitário de poder. O Brasil precisará de pelo menos uma década para tentar remediar o malefício causado pelo ensinamento da retórica do ódio e da ló gica da refutação de Olavo Carvalho, que tornam o debate impossível. Vamos enfrentar dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras enredados numa rea lidade paralela. Vamos ter de trabalhar muito.

 

 

Sobre João Cezar de Castro Rocha 4w6h60

 

O ensaísta João Cezar de Castro Rocha é professor titular de literatura comparada da UERJ e pesquisador do CNPq. Graduado em história e mestre e doutor em letras pela UERJ, fez um segundo doutorado em literatura comparada na Stanford University, EUA. Realizou estudos de pós-doutorado na Freie Universität e na Princeton University. Recebeu, em 2014, o prêmio Ensaio e Crítica Literária da Academia Brasileira de Letras, e, em 1998, o Prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional.

É editor-executivo da revista Portuguese Literary & Cultural Studies, publicada pela University of Massachusetts-Dartmouth. Foi fellow da Universidade de Winsconsin, do Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, do St. John’s College da Universidade de Cambridge e da Beinecke Library da Universidade de Yale. Também ocupou a Cátedra Machado de Assis da Universidad del Claustro de Sor Juana, México. Autor de 13 livros, entre os quais “Guerra cultural e retórica do ódio”, é também organizador de mais de 30 títulos. Seu trabalho já foi traduzido para o mandarim, alemão, espanhol, francês, italiano e inglês.

 

 

  • “Guerra cultural e retórica do ódio: Crônicas de um Brasil pós-político” (Caminhos Editora e Livraria, 2021)

  • “Evolução e Conversão – Diálogos sobre a origem da cultura” (com René Girard e Pierpaolo Antonello; É Realizações, 2011)

  • “Culturas shakespearianas – Teoria mimética e os desafios da mímesis em circunstâncias não hegemônicas” (É realizações, 2017) 

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