A menina que tinha a verdade sobre as pessoas em seus olhos
Conexão BH-Rússia traz os contos de Andrei Platônov, um dos maiores escritores russos do século 20
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Siga noUm dos mais importantes escritores russos do século 20 está de volta ao mercado brasileiro. Acaba de ser lançado o livro “O amor pela pátria e outras histórias – Contos: volume II”, de Andrei Platônov (1889-1951). A obra tem tripla conexão com Minas Gerais, pois foi lançada pela editora Ars et Vita, sediada em Belo Horizonte, tem tradução de Maria Vragova, radicada na capital, e ilustrações de Anna Cunha, nascida na cidade.
“Iúchka e outras histórias” – Contos: volume I”, lançado em março de 2024, já apresentou aos leitores a bela obra humanista de Platônov, um escritor que, apesar da sua grandeza, é pouco divulgado no Brasil, ainda ofuscado por gigantes da literatura russa do século 19, como Tolstói, Dostoiévski, Gógol, Tchékhov e Turguêniev, e da época em que viveu, como Górki e Nabokov, por exemplo.
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Maria Vragova, entretanto, já adverte logo no prefácio de “O amor pela pátria e outras histórias”: “A obra tardia de Platônov, que abrange os oito contos reunidos neste volume, não pode ser comparada com a de nenhum outro escritor, russo ou estrangeiro. Nela, Platônov parece apenas a si próprio – um artista de surpreendente ternura por tudo o que é humano e dotado de um raro discernimento psicológico”.
A tradutora destaca também: “Com a precisão de um gravurista e um lirismo único, que preserva nas entrelinhas uma acidez e amargor quase imperceptíveis, [Platônov] sabe como deter nossa atenção no que é fugaz comover-nos, fazer-nos rir ou, de repente, por meio de uma transformação platonoviana da frase, prender a nossa respiração diante de uma reviravolta na trama”. Ela lembra ainda que o escritor se recusou a fazer uma escolha entre os lados sombrio ou positivo da vida.
Essa análise é notória na obra. A exemplo dos oito contos do primeiro livro (“A borboleta colorida”, “Iúchka”, “O curso do tempo”, “De bom coração”, “Toda a vida”, “O dom da vida”, “Afônia” e “A oitavinha”), os oito do segundo volume (“Úlia, “O amor pela pátria ou a viagem do pardal”, “Mamãe também”, “Puk-Puk”, “A pequena isbá da vovó”, “No juízo de Deus”, “A tempestade de julho” e “A flor desconhecida”), parecem, à primeira vista, tratar de literatura infantil, inclusive porque muitos personagens são crianças e a narrativa é fabular.
Os contos revelam um olhar peculiar, filosófico e poético, que mesclam realismo e fábula com histórias de uma Rússia ancestral e profunda, a cultura popular de gente simples e sofrida submetida a situações cruéis.
Os olhos de Úlia
Muitos personagens de Platônov são crianças que enxergam o mundo além dos olhares adultos. O conto “Úlia”, por exemplo, começa assim: “Certa vez viveu neste mundo uma linda criança. Hoje, todos se esqueceram dela, de como se chamava, do seu rosto; ninguém mais se lembra... Somente a minha avó se recordava daquela linda criança e me contou como ela era. Me contou ela que a criança era uma menina e se chamava Úlia. Todos os que haviam visto a pequena Úlia sentiram uma dor no coração, porque Úlia era meiga de rosto e boa de caráter, mas nem todos que olhavam para ela eram honestos e bondosos.”
No fundo dos olhos de Úlia as pessoas viam a sua verdadeira realidade, não apenas a aparente ou a ilusória. “Nos olhos de Úlia só se refletia a mais pura verdade. Se um homem cruel tinha rosto bonito e roupas caras, nos olhos de Úlia era horrível e coberto por chagas em vez de joias. A própria Úlia não sabia que nos seus olhos se refletia a verdade.”
São histórias assim, ao mesmo tempo ingênuas e assombrosas, que encantam e impressionam o leitor de Platônov. Maria Vragova explica em entrevista ao Pensar: “As crianças [de Platônov] não são retratadas de maneira infantil, são pequenos seres humanos que assumem a completa responsabilidade ao lidar com um mundo vasto, complexo e, muitas vezes, indecifrável. Em diversas ocasiões, os próprios personagens adultos da obra platonoviana se parecem com crianças, pela inocência, ingenuidade e impossibilidade de viverem no mundo dos adultos.”
Vragova também ressalta: “Para Platônov, as crianças são aquelas criaturas dóceis que vencerão o mundo. Como diz um dos seus personagens, se dirigindo às crianças: 'Vocês ainda são crianças, são os pequenos entre os homens, e vocês tomarão o reino humano. Em todo lugar, os pequenos do mundo tomarão o mundo para si. O menor, o mais perseguido, o desconhecido, o silencioso, o não nascido, aquele para quem até um grão de areia é um deus, é o verdadeiro rei da Terra’”.
Ternura e tragédia
A edição de “O amor pela pátria e outras histórias” é contemplada por belas “pinturas” da premiada ilustradora de BH Anna Cunha, vencedora do prêmio Jabuti – um dos principais da literatura brasileira – entre outros. A artista também falou ao Pensar sobre o seu trabalho na obra de Platônov. “É um texto sofisticado demais, que tece essas dualidades entre ingenuidade e maldade tanto através da linguagem quanto da narrativa, e deixa o leitor simultaneamente com a ternura e a tragédia. (…) O que pude tentar fazer foi traduzir visualmente o espanto e a perplexidade, dos personagens e do leitor (no qual me incluo) diante deste inconciliável do texto e da vida.”
“Me identifico profundamente com o olhar e a atenção poética de Platônov para o mundo, e acho que isso sempre esteve presente no meu trabalho de ilustração de forma espontânea”, conta Anna Cunha também, ao comentar a empreitada de ilustrar a obra do escritor russo. “Levei alguns bons meses trabalhando unicamente nesse projeto, mas é um texto tão denso que poderia ter dedicado anos sem esgotar a tarefa.”
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“Tchevengur"
Andrei Platônov construiu sua obra sob o regime opressor do ditador Josef Stálin (1878-1953), que reconheceu a genialidade do autor, mas destruiu a sua carreira literária, segundo Maria Vragova, e levou o filho do escritor à morte. Na primeira metade do século 20, a Rússia estava transformada em União Soviética sob o duro regime de Stálin, que subjugou ou expurgou escritores sob o chamado realismo socialista. A ditadura que usurpou o comunismo – sistema de governo que abominava o Estado – ou a divulgar a literatura e outras formas de arte como instrumentos dos ideais revolucionários com objetivos de propagandear o êxito do regime, cujas atrocidades só foram reveladas após a morte de Stálin, em 1953.
Diante de tanta opressão, a obra de Platônov foi banida na União Soviética e, de tabela, no Brasil também. “A literatura russa ora era mistificada por uma esquerda que hoje, com o distanciamento histórico necessário e saudável, endeusava tudo o que chegava da União Soviética, ora (e muitas vezes) era demonizada pela ditadura militar então vigente no Brasil”, disse Maria Vragova ao Pensar, durante o lançamento no Brasil de “Tchevengur”, em 2022, a obra-prima de Platônov que também traduziu para o português com Graziela Schneider.
“Tchevengur” é um romance monumental, de estilo inclassificável devido à sua complexidade. Na obra, Platônov cria uma cidade imaginária nos confins da Rússia transformada numa espécie de paraíso como sátira ao regime soviético. Na vastidão territorial do maior país do planeta, a luta pela sobrevivência em meio à pobreza e a fome era gritante. Aos poucos, em suas obras, Platônov, inicialmente alinhado ao regime, foi manifestando seu desencanto.
Desde as primeiras páginas, o desenrolar da leitura de “Tchevengur” – além da saga quixotesca de um dos protagonistas, Stepán Kopienkin, que tem um cavalo chamado Força Proletária, analogia com o Rocinante do herói/anti-herói de Cervantes), a linguagem paródica e poética de Platônov e a variedade de gêneros remetem o leitor também às obras de outros dois gênios literários, o brasileiro Guimarães Rosa (1908-1967) e o moçambicano Mia Couto, também pela grande riqueza de estilo e linguagem, como “um aspecto totêmico”, analisa Maria Vragova.
Seja nos contos agora publicados ou nas demais obras, como o fabuloso “Tchevengur”, a literatura de Andrei Platônov, mesmo tardia, parece ter um longo caminho a conquistar no Brasil.
Entrevista/ Maria Vragova Tradutora
“Platônov é uma voz revolucionária na literatura russa do século 20”
Por que traduzir Platônov para o português e por que os brasileiros devem ler a obra dele?
Segundo Slavoi Jijek e Iossif Brodski, “Platônov é o maior escritor russo/soviético do século 20”. A obra dele ocupa um lugar destacado também como obra icônica da literatura mundial do século ado. Mas, apesar deste fato, a obra deste autor único ainda é pouco conhecida no Brasil e no mundo lusófono. Por exemplo, em Portugal só foram publicadas duas novelas dele, “A escavação” e “Djan”, e o seu único romance finalizado, o “Tchevengur” (escrito em 1929) que, indubitavelmente, é uma das obras mais importantes da literatura russa do século 20. Publicado no Brasil somente em 2021, foi a primeira tradução para português no âmbito mundial.
O leitor brasileiro que já está bem abastecido com a litertura russa do século 19, tem que conhecer melhor e mais a literatura russa do século 20, e conhecer também a obra de Andrei Platônov, a sua filosofia e a sua linguagem única. A impressionante originalidade da língua platonoviana tem o seu início na deformação das conexões semânticas, sintáticas e estilísticas usuais. Semelhante singularidade e peculiaridade pode ser encontrada na escrita de Guimarães Rosa. Os protagonistas da estepe de Platônov também se aproximam dos personagens do sertão rosiano no seu aspecto totêmico. Assim, a compreensão do idioma falado pelos heróis de “Tchevengur” é a porta de entrada para se aproximar do complexo universo artístico de um dos escritores mais misteriosos e brilhantes do século 20.
“Quando via rosto de criança, ou queria logo morrer, para não ter saudades da vida jovem e feliz, ou tinha vontade de ficar vivendo no mundo eternamente”, diz um personagem de um conto de “O amor pela pátria e outras histórias”. Como no primeiro volume, “Iúchka”, onde está dito que “a infância permanece como um tempo eterno, intocável nas lembranças do homem”, Platônov mais uma vez parece ser uma criança eterna que sofreu porque cresceu e virou adulto. Essa é a importância da obra do autor russo, jamais deixar morrer dentro do adulto a criança que foi, sempre com olhar poético e filosófico também, mesmo num mundo adverso e cruel?
Falando do mundo da infância, me veio à mente uma frase de Fiódor Dostoiévski, cuja obra e filosofia, com certeza, tiveram alguma influência na obra de Andrei Platônov: “...uma lembrança maravilhosa, sagrada, conservada desde a infância, pode ser a melhor educação. Se o homem traz consigo muitas destas lembranças para sua vida, está salvo pelo resto da existência. Mesmo que guardemos apenas uma boa lembrança no coração, algum dia só isto já nos poderá servir como salvação”. A criança e o mundo infantil ocupam com frequência a posição central na obra de Platônov, muitas vezes, se contrapondo ao mundo dos adultos.
O universo da infância, que tomou uma posição relevante no processo criativo de Platônov durante toda a sua trajetória, transparece nos inúmeros contos escritos para e sobre as crianças. De certa forma, o autor enxergava o mundo através do olhar de uma criança. A compreensão do mundo pelo olhar infantil incita ainda a uma reflexão sobre o mundo natural e as relações mantidas entre o homem e a natureza. Suas crianças não são retratadas de maneira infantil; são pequenos seres humanos que assumem a completa responsabilidade ao lidar com um mundo vasto, complexo e, muitas vezes, indecifrável. Em diversas ocasiões, os próprios personagens adultos da obra platonoviana se parecem com crianças, pela inocência, ingenuidade e impossibilidade de viverem no mundo dos adultos.
Os motivos infantis — a humanização animal e a diluição da fronteira entre as crianças e os seres vivos, a oposição do pequeno ao grande, a insegurança infantil e a figura da criança salvadora, a saudade que os adultos têm da infância — estão organicamente ligados à filosofia platônoviana. Eles colorem as convicções do autor com matizes ingênuos e, ainda assim, sérios. Para Platônov, as crianças são aquelas criaturas dóceis que vencerão o mundo. Como diz um dos seus personagens, se dirigindo às crianças: “Vocês ainda são crianças, são os pequenos entre os homens, e vocês tomarão o reino humano. Em todo lugar, os pequenos do mundo tomarão o mundo para si. O menor, o mais perseguido, o desconhecido, o silencioso, o não nascido, aquele para quem até um grão de areia é um deus, é o verdadeiro rei da Terra”.
A obra de Platônov escrita em pleno regime opressor de Stálin seria uma forma de sublimação ou escape dele para ar a dura realidade da época?
Acho que não seria nem sublimação, nem escape. Em 1931, depois de ler o conto “De reserva”, Stálin colocou alguns comentários marginais sobre o autor, chamando ele de “tolo, idiota, canalha” e dizendo sobre o seu estilo literário que “isso não é russo, mas sim um absurdo incompreensível”. Em nota aos editores, Stálin descreveu Platônov como “um agente de nossos inimigos” e sugeriu em um posfácio que o autor e outros “idiotas” (ou seja, os editores) deveriam ser punidos de forma que a punição lhes servisse “para uso futuro/de reserva”.
Essas críticas de Stálin arruinaram a vida literária de Platônov. Ele não escreveu durante três anos, e mesmo depois, quando voltou a escrever, a maioria das suas principais obras literárias não foi publicada durante a vida de autor. Mas Stálin era ambivalente quanto ao valor de Platônov como escritor. Um informante de KGB afirmava que ele também se referia ao escritor como “brilhante, um profeta”. Não podemos esquecer também da história do filho de Platônov. Em 1938, aos 15 anos de idade, seu filho, Platón, foi preso por calúnia e condenado por “propaganda antissoviética”.
Somente graças aos esforços do escritor Mikhail Chólokhov, amigo de Andrei Platônov, ele foi libertado, o que se deu em 1941. Mas o menino regressou da prisão enfraquecido e faleceu de tuberculose dois anos depois. A dor provocada por essa perda acompanharia Platônov até o fim de seus dias. Mas Platônov, tendo sua vida arruinada por Stálin, nunca, ou quase nunca parou de escrever, apesar de Stálin, nunca desviou do seu caminho único na literatura russa, nunca abandonu os temas abordadas na sua obra, tão desconfortáveis para o poder soviético. Mesmo sem ver a sua obra reconhecida, falecendo em 1951, dois anos antes de Stálin e deixando os seus principais livros não publicados, ele continua a ser um autor único, uma voz solitária e revolucionária na literatura russa do século 20.
Entrevista/Anna Cunha/ilustradora
“Tento criar imagens que não têm um sentido acabado”
Qual o sentimento de transpor para imagens os textos fabulares, poéticos e filosóficos de Platônov, quase sempre contornados por olhares de crianças? Afinal, o escritor parece manter a criança que foi sempre presente dentro do adulto, mas a maldade do mundo está sempre à espreita diante da ingenuidade e da pureza.
Ilustrar Platônov foi um grande desafio, justamente por essa complexidade. É um texto sofisticado demais, que tece essas dualidades entre ingenuidade e maldade tanto através da linguagem quanto da narrativa, e deixa o leitor simultaneamente com a ternura e a tragédia. Acho sinceramente que isto é dificílimo de transpor para uma imagem, pelo menos senti que era algo fora do meu alcance. O que pude tentar fazer foi traduzir visualmente o espanto e a perplexidade, dos personagens e do leitor (no qual me incluo) diante deste inconciliável do texto e da vida.
As ilustrações de “O amor pela pátria e outras histórias” têm a natureza como elemento principal – árvores, flores, pássaros... – e crianças e adultos integrados a ela. Você se identificou com a imaginação de Platônov e quanto tempo levou para fazer essa comunhão de uma linguagem visual poética com a percepção delicada do escritor?
Sempre tive um olhar muito encantado para a beleza e também para o enigma e o assombro diante da natureza, tanto que antes de me tornar ilustradora me formei em biologia. Me identifico profundamente com o olhar e a atenção poética de Platônov para o mundo, e acho que isso sempre esteve presente no meu trabalho de ilustração de forma espontânea. Levei alguns bons meses trabalhando unicamente nesse projeto, mas é um texto tão denso que poderia ter dedicado anos sem esgotar a tarefa.
Você é uma artista reconhecida e premiada. Qual o seu estilo ou técnica de trabalho que garantiu esse reconhecimento? Algo definido ou experimentação?
Eu não consigo sinceramente prever o que do meu trabalho, ou como, ele vai se comunicar com as pessoas, quais leituras elas farão a partir das imagens que crio. Por isso também não sei dizer muito bem por onde am as falhas ou os acertos, e se não são precisamente as falhas que atribuem alguma identidade ao meu trabalho. Eu não acho que seja exatamente sobre técnica porque venho experimentando e mudando muito de estilo ao longo dos anos, mas minha aposta é de que algo importante exista justamente nessa abertura, nesse meu não saber. Tento criar imagens que não têm um sentido acabado, absoluto. Me interessa preservar um espaço de estranhamento, de dúvida, imagens que sejam perguntas – o que isso quer dizer? – e que façam cada leitor criar a sua resposta singular.
“O AMOR PELA PÁTRIA E OUTRAS HISTÓRIAS – CONTOS: VOLUME II”
• Andrei Platônov
• Tradução: Maria Vragova
• Ilustrações: Anna Cunha
• Ars et Vita
• 136 páginas
• R$ 72